Existe uma ideia muito difundida na sociedade que considera a disposição das pessoas a terem uma determinada vocação. Muitos se referem à essa ideia como se fosse uma sensação de possuir um chamado interno, uma predisposição inata, um talento original. Te convido a refletir um breve momento nesse contexto.
Imagine-se na sua adolescência. Se você não é um nativo digital, e mesmo assim sobreviveu aos questionamentos e incertezas dessa fase sem compartilhar via web sua angústia, tente reconhecer os fatos. Um(a) jovem aos seus dezessete, dezoito anos, tentando provar a si próprio e ao resto do mundo o seu valor, impondo-se a busca desse chamado inato para tentar fazer a mais acertada escolha profissional, um investimento a longo prazo. Um adolescente sem a experiência de realidade de trabalho, sem ter tido a chance de testar suas habilidades, tomado de incertezas e idealizações. Complicadinho né? Alguns jovens possuem uma percepção maior em relação aquilo que gostam, das suas qualidades, interesses e habilidades. Mas a grande maioria não viveu experiências que qualificassem esse complexo processo de autoconhecimento, que é desenvolvido ao longo da vida, e muitas vezes aquela virada de carreira, aos 40 anos, está ligada a esse processo.
O que realmente acontece é que a maioria das pessoas não possuem vocação nenhuma. Existe uma diferença a ser considerada entre talento e vocação. Digamos que o seu talento é algo que você faz de maneira diferenciada, acima da média comum, aquilo que te destaca de outras pessoas. Nem sempre o seu talento o qualifica para desempenhar a profissão que gostaria de seguir, e nesse sentido precisamos descontruir outro mito embutido na pós-modernidade: fazer o que se gosta para ser feliz, uma vez que a meta da vida consiste em ser realizado e feliz, sempre. Particularmente eu diria que a vocação é muito mais uma construção ativa, eficiente, do que uma determinante pré-concebida.
O trabalho não precisa ser encaixado nessa fantasia de sermos felizes e realizados o tempo todo. Acordarmos todos os dias auto motivados para darmos o melhor nem sempre é uma possibilidade. Nesse sentido é preciso ajudar o jovem a entender que qualquer profissão trará altas doses de frustração e problemas, e que é sempre o indivíduo que qualifica a sua profissão, e não o contrário.
O mercado de trabalho competitivo acaba determinando uma enorme pressão pela performance perfeita, intencionada para produzir um sujeito que primeiramente produza, para que então consuma.
A sociedade dita a regra da valiosa motivação ao trabalho e muitas inverdades são comercializadas na mídia no intuito de ampliar a manipulação das pessoas para que produzam cada vez mais, sem questionamentos. Roda-viva do capitalismo, porém somente o dinheiro não sustenta a motivação a longo prazo. A realização, bem como o sucesso profissional são multifatoriais, e fracassos fazem parte dessa busca.
Percebo que grande parte das intenções de escolhas profissionais dos adolescentes estão baseadas em premissas distorcidas e, de modo geral, conjugam fantasias e expectativas dos pais e de pessoas próximas ao seu convívio. Será que racionalmente o jovem precisa saber qual profissão irá aprender, recém-saído do ambiente infantil do colégio? Talvez parte da grande angústia advenha da falta de capacidade de escolha a longo prazo.
Em diversos países há uma grande aceitação de um ano sabático para colocar esses jovens em contato com a vida real. Programas de estudo e trabalho são disponibilizados nessa intenção, subsidiando uma orientação mais assertiva, na medida em que desenvolvem a percepção para entender melhor a profundidade dessa escolha. Em última análise, consideremos a subjetividade da qual falava o psiquiatra americano James Grotstein: Quem é o sonhador que sonha o sonho? Seria a visão do desejo do outro que atravessa a nossa vida, e aquilo que acreditamos ser nossos sonhos, na verdade, são os sonhos dos outros? Uma certeza podemos ter.
Devemos e podemos perseguir um sonho, mas achar sentido naquilo que se realiza, no servir ao outro, no desempenho de um trabalho útil para a sociedade pode ser uma possibilidade real. A sobrevivência não pode ser idealizada.
Créditos:
Adriana di Croce Garms é psicóloga clínica, pós
graduada em Gestão de Conflitos e atende
crianças e adolescentes em qualquer idade . Mãe
de 3, acredita que as pessoas deveriam ter e se
dar a chance do auto-conhecimento.
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